Vestido todo de branco, Wagner Lopes de Oliveira foi batizado há nove anos nas águas de uma piscina da Assembleia de Deus, de onde saiu praticante fiel. Seis anos depois, quando o sogro sofreu um derrame, foi ele quem se ofereceu para dar comida e trocar as fraldas do doente até que morresse. Há dois anos, foi a vez do pai. Para ajudar nos cuidados do derrame, voltou a morar com a mãe, levando a mulher e a filha de 3 anos.
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O trabalhador admirado pelo patrão, respeitado pelos vizinhos em Cocaia do Alto, bairro onde mora na cidade de Cotia, em São Paulo, sete anos atuando como soldador na mesma empresa, 29 anos e nenhuma passagem pela polícia, foi parado em uma blitz no Natal do ano passado. Desprevenido, ingressava na primeira etapa do processo industrial paulista de colocar gente na prisão.
Atualmente, há 170.916 presos no sistema penitenciário estadual. Considerando os familiares dos detentos, pode-se dizer que mais de 1 milhão em São Paulo gravitam em torno da rotina penitenciária. Se ninguém duvida da importância das prisões, que segundo analistas ajudam a explicar a queda nos índices criminais do Estado, o problema ocorre quando se perde o controle dos efeitos colaterais produzidos pelo sistema, resultados de um processo cheio de defeitos e com grande potencial para injustiças.
Preso há três meses, acusado de tráfico, com perspectivas de continuar o restante do ano no Centro de Detenção Provisória de Itapecerica da Serra, Wagner foi parar atrás das grades a partir de um único depoimento que o incrimina. No Natal, depois de participar de um churrasco na casa da irmã, ele se ofereceu para dar carona a quatro amigos. Deixou dois em casa e parou na praça do bairro. Três meninas – uma delas havia sido inquilina na casa dos fundos da família – pediram carona. Iam para uma festa. No caminho, foram parados em uma blitze da Polícia Militar.
Uma das meninas tinha 17 pedras de crack e 5,8 gramas de cocaína na bolsa. Na delegacia, manteve-se calada. A filha da antiga inquilina da família afirmou que Wagner é que era o fornecedor. A outra disse que o traficante era o Bola. Foi o suficiente para que se decretasse a prisão em flagrante. “Não cruzaram ligações para saber se havia telefonemas das acusadas para o Wagner. Não foram investigar a existência do tal de Bola. Não houve nenhum tipo de investigação e mesmo assim ele permanece preso”, diz o advogado Thiago Gomes Anastácio, que atua no caso pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD).
A irmã de Wagner, Jaqueline Aparecida de Oliveira, desesperada com as condições do caçula de nove irmãos, foi conversar com a menina que acusou Wagner, antiga conhecida da família. Ela e a mãe choraram e pediram desculpas pelas mentiras, disseram que foram ameaçadas, em conversa gravada, a qual o Estado teve acesso. “Eu precisava provar que ele era inocente e por isso gravei. Tenho pena delas. E realmente não entendo como ainda não conseguimos tirá-lo da cadeia”, diz Jaqueline.
O pai, doente, sabendo da prisão de Wagner, morreu. Além de Wagner não ter ido ao enterro, a família ainda não teve coragem de contar a ele sobre o ocorrido, na cela em que divide hoje com 42 presos.
Se fosse condenado, como é primário, trabalhava e não participava de quadrilha, provavelmente Wagner ficaria menos de dois anos na prisão. Pena que poderia cumprir em liberdade, depois de meses encarcerado.
Lei de Drogas. Ex-secretário Nacional de Justiça, Pedro Abramovay, professor da Fundação Getúlio Vargas no Rio, afirma que a nova Lei de Drogas, de agosto de 2006, tem contribuído para o rápido crescimento da população carcerária nacional. Em estudo ainda inédito, feito com Carolina Dzimidas Haber, da Universidade Federal do Rio (UFRJ), Abramovay aponta o rápido crescimento da quantidade de traficantes presos.
Entre 2007 e 2010, houve um aumento no Brasil da população carcerária de 73.661 pessoas – o que demandaria a construção de um presídio de 500 lugares por semana. Desse total, 40.997 foram acusados de tráfico. A prisão por roubo, crime que mais preocupa por ser violento, diminuiu 3% no mesmo período. “A nova Lei de Drogas, em tese, acabou com a prisão para o usuário. Mas, como não estabelece a diferença entre usuários e traficantes, na prática, estamos vendo um aumento no rigor e na detenção daqueles que são pegos com pequenas quantidades. Quem acaba definindo a diferença são os próprios policiais”, diz.
Grande parte dos que são presos é de pequenos traficantes. Em pesquisa encomendada pelo Ministério da Justiça, os dados mostram que, entre 2006 e 2008, 66% dos que foram presos acusados de tráfico no Brasil eram primários e 86% não estavam com armas; 50% das sentenças envolviam quantidades de maconha de até 104 gramas, total que muitos consumidores paulistanos estocam para fumar por poucos meses. “O governo tem uma política clara de combate às drogas. Trata com rigor ainda maior de pena traficantes que pertencem ao crime organizado. Mas o governo tem todo um conjunto de políticas de prevenção e de tratamento de drogados que não podem ser ignoradas. Repressão e prevenção nem sempre são antagônicas”, disse ao Estado o ministro da Justiça, José Eduardo Martins Cardozo.
Na falta de competência para fazer investigações, a pobreza reforça as suspeitas das autoridades para determinar a prisão. No dia 20 de janeiro, Rose Meire Rodrigues de Souza, de 20 anos, mãe de uma criança de 5, foi chamada por amigos para ir à delegacia da comunidade onde mora, na zona leste de São Paulo, para levar os documentos do primo que, cinco horas antes, havia sido preso em um assalto. Na delegacia, foi reconhecida pela vítima, que afirmou ser ela a responsável por dar cobertura aos criminosos. Foi para a Penitenciária Feminina de Sant”Ana, onde está até hoje. “Como ela pode ter assaltado se precisou limpar a casa e tirar os móveis por causa da enchente que inundou tudo aqui naquele dia?”, questiona a mãe, Francisca Rodrigues da Silva. “Se ela tivesse participado, o que iria fazer na delegacia?” Perguntas que, mesmo sem respostas, mantêm a Justiça convicta da necessidade de manter Rose Meire presa indefinidamente.